Desmatamento

Efeito do desmatamento no balanço hídrico #


Existe uma controvérsia na Hidrologia acerca dos impactos do desmatamento no regime hídrico de uma bacia. De um lado, alguns defendem que o desmatamento “seca a bacia”; outros defendem a posição de que a retirada da vegetação aumenta a descarga de água da bacia. Com efeito, o balanço hídrico de longo prazo em uma bacia pode ser resumido pela equação:

VAZÃO = PRECIPITAÇÃO - EVAPORAÇÃO - TRANSPIRAÇÃO VEGETAL

Nessa equação, todos os termos devem ser entendidos como fluxos médios de água no longo prazo (que podem ser medidos, por exemplo, em metros cúbicos por segundo). Os três termos no membro direito da igualdade referem-se aos fluxos médios de água na bacia a montante do posto de medição da vazão. Assim, a equação acima não representa o caminho de uma molécula de água particular no ciclo hidrológico, mas fluxos médios de água em uma bacia (membro esquerdo da equação) e sua vazão de descarga (membro direito da equação).

No balanço hídrico representado pela equação acima, a chuva e a evaporação estão basicamente relacionadas ao clima da bacia (a evaporação depende, em primeira aproximação, da temperatura do ar próximo ao solo). Essas variáveis climáticas podem se alterar no longo prazo, por diversas razões, algumas delas naturais e outras antrópicas, como é o caso das mudanças climáticas globais provocadas pelo aumento da concentração atmosférica de gases de esfeito estufa. Pela equação, quanto mais chuva mais vazão (o que é intuitivo) e quanto maior a evaporação menos vazão. Assim, quanto maior a temperatura, mais evaporação e menos vazão (também intuitivo).

A transpiração vegetal, por outro lado, depende basicamente da cobertura vegetal da bacia: quanto mais vegetação, mais transpiração; assim, o desmatamento tende a aumentar a vazão na calha da bacia. Esse fato é contraintuitivo e merece discussão: todos sabemos que o desmatamento tende a provocar ressecamento do solo, desaparecimento dos olhos d´água e animais, enxurradas com carreamento de sedimentos, erosões, assoreamento dos rios, enfim, um cenário horrível de destruição do ecossistema e perda de biodiversidade. Tudo isso é indiscutivelmente verdadeiro, mas não é nada disso que a equação acima representa: seu membro direito refere-se apenas à vazão de descarga da bacia, no ponto mais baixo do seu relevo. As partes altas da bacia podem estar secas e cheias de vossorocas, mas sem a vegetação a água das chuvas corre rapidamente para as partes mais baixas do terreno, aumentando a vazão lá embaixo.

Por outro lado, as plantas são seres vivos, que precisam de água para realizar seus processos fisiológicos, e para tanto retiram água do solo e transpiram, no que devolvem a maior parte da água absorvida pelas suas raízes para a atmosfera. Ou seja, a vegetação bebe uma parte considerável da água das chuvas e transpira de volta esta água para o ar. A água que foi transpirada não chega às partes mais baixas da bacia e, consequentemente, a vazão dos rios lá embaixo diminui.

Imaginemos o que acontece quando uma morro que havia sido desmatado é reflorestado: as plantas passam a interceptar a água da chuva, que é absorvida pelo solo ao invés de correr em enxurradas. Com a retenção da água nas partes altas do morro, o nível do lençol freático sobe e as minas ressurgem nas encostas, fortalecendo a vegetação e assim enriquecendo o solo desgastado. Os animais e pássaros podem retornar pois agora há alimento e ambiente para sustentar a cadeia trófica. Tudo isso é ótimo para a natureza, mas não é esse complexo processo biológico que a equação representa.

Do ponto de vista exclusivo do balanço hídrico de longo prazo, o reflorestamento simplesmente introduz vegetação, que vai beber uma água que antes chegava aos rios e, agora, não vai chegar mais. Ou seja, a vazão de descarga da bacia vai diminuir com o reflorestamento. Pode-se argumentar que a vegetação vai “atrair chuvas”, ou que “a água transpirada vai retornar como chuva”; mas na equação acima as chuvas e a evaporação estão representadas por termos próprios, independentes da cobertura vegetal. Como foi dito anteriormente, a equação não representa o caminho de uma molécula particular de água no ciclo hidrológico: todos os seus termos denotam fluxos médios de água na bacia (que podem ser medidos em “m3/s”).

Um exemplo concreto pode ajudar a ilustrar o balanço hídrico de longo prazo: o Paradoxo do Rio Paraná. Na segunda metade do século XX, a vazão média no ponto do rio onde hoje está a barragem de Itaipu aumentou consideravelmente (cerca de +20%). No entanto, o volume médio de chuvas em toda a bacia do Rio Paraná diminuiu bastante no mesmo período (aproximadamente -20%). Como se explica esse fato aparentemente paradoxal? Só há uma explicação hidrologicamente plausível, que é confirmada por modelos matemáticos: a retirada em larga escala de vegetação na região drenada pelo Rio Paraná provocou um aumento da vazão média de descarga da bacia, e este aumento mais do que compensou a redução das chuvas no mesmo período. Ou seja, o desmatamento por si só teria aumentado a vazão em cerca 40%!

Outra forma de colocar o problema é distinguir claramente fluxos de água e estoques de água: os estoques são medidos em unidades de volume, como litros ou metros cúbicos (m3), enquanto os fluxos são medidos em unidades de “volume por tempo”, como “m3/s”. Assim, os dois tipos de grandeza são conceitualmente distintos. A “vazão de descarga” ou “produção de água” de uma bacia hidrográfica é um fluxo, não um estoque.

Um morro coberto de vegetação nativa armazena uma enorme quantidade de água no terreno e na sua vegetação, ou seja, ele conserva um grande estoque de água. Mas o balanço hídrico não se refere a estoques, e sim a fluxos de água. Quando não há discernimento entre os dois conceitos, o grande estoque tende a ser confundido com um grande fluxo, ou seja, com uma grande vazão de descarga ou produção de água. Quando olhamos para uma mina em um morro coberto de vegetação, tendemos a imaginar que o fluxo de água que sai dela chegará todo na calha da bacia, contribuindo assim para sua vazão de descarga. Mas isso não é verdade: uma boa parte desta água será absorvida pela vegetação abaixo da mina e transpirada para a atmosfera, ou seja, esta água não chegará às partes mais baixas da bacia.

Além disso, um morro com vegetação nativa tende a produzir um fluxo constante de água, regularizado pelos estoques subterrâneos; e esta água geralmente é muito limpa, pois foi filtrada pela terra. Em comparação, a água produzida por um morro desmatado geralmente desce o relevo como uma enxurrada (que tende a carrear muito mais sedimentos) e apenas por um certo tempo, imediatamente após as chuvas mais fortes (sem chuva, costuma haver apenas uma grota seca no local da enxurrada). Assim, o morro desmatado passa a falsa impressão de descarregar, em média, menos água do que o morro com vegetação.

A Hidrologia é uma ciência complexa demais para ser colocada em termos românticos, tais como “desmatar é ruim” ou “reflorestar é bom”. Cada ação antrópica em uma bacia hidrográfica tem consequências físicas e biológicas, que seguem as respectivas leis naturais. Com isso não estamos afirmando que seja bom desmatar: sabemos que o desmatamento empobrece o solo, aumenta a erosão da terra e o assoreamento dos cursos de água, sendo portanto péssimo para a biodiversidade e a conservação da natureza em geral.

Mas o balanço hídrico expressa uma lei da química muito simples: a quantidade total de água se conserva, pois ela não é criada nem destruída ao longo do seu ciclo natural. A vegetação precisa transpirar para permanecer viva, e para tanto ela retira água do solo e devolve à atmosfera. No mais, o balanço hídrico é puramente quantitativo: ele não faz distinção entre um rio perene de águas cristalinas e uma enxurrada lamacenta que corre depois de cada chuva.



Última atualização em 10/ago/2023.