METODOLOGIA

METODOLOGIA #


Este trabalho analisou as séries históricas de vazões naturais afluentes [1] publicadas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) correspondentes ao período 1931-2021. Estas séries reconstituem o que seriam as vazões fluviais nos principais rios brasileiros na ausência de intervenções antrópicas, tais como barragens e retiradas de água.

Nossa análise foi feita em três etapas:

(i) identificação de padrões regionais de variação de longo prazo das vazões dos rios brasileiros;

(ii) determinação das causas destas variações pela análise do processo gerador de dados (PGD) das séries históricas de vazões; e

(iii) projeção das vazões médias futuras por meio da modelagem estatística das séries históricas.

A seguir discutiremos cada uma delas separadamente.

1. Identificação de padrões regionais #

Tomando as médias de trinta anos da série de vazões em cada posto de medição, obtemos histogramas simples que indicam o comportamento de longo prazo da série, como este:

histograma

Dispondo estes histogramas em um mapa, podemos identificar três padrões regionais de variação de longo prazo das vazões dos rios brasileiros:

(a) No Setor Nordeste, que abrange toda a região NE, o Norte de MG e a bacia do Rio Tocantins, as vazões seguem um padrão do tipo:

histograma

(b) No Setor Sudeste, abrangendo aproximadamente o Norte de SP, o Sul de MG e de GO, o padrão de variação de longo prazo das vazões é:

histograma

(c) No Setor Sul, correspondente aproximadamente à região Sul do país e o Sul de SP, as vazões médias aumentaram tanto na primeira metade das séries históricas quanto na segunda:

histograma

No restante do território nacional, não há um padrão facilmente reconhecível de variação de longo prazo das vazões fluviais. Esta parte do país será denominada aqui Setor Norte-Oeste.

2. Causas da variação das vazões #

A vazão de longo prazo em cada ponto de um rio é determinada pelo balanço hídrico na bacia hidrográfica a montante deste ponto, que pode ser resumido pela seguinte equação:

VAZÃO = PRECIPITAÇÃO - EVAPORAÇÃO - TRANSPIRAÇÃO VEGETAL

Nessa equação, todos os termos devem ser entendidos como fluxos médios de água no longo prazo (que podem ser medidos, por exemplo, em metros cúbicos por segundo). Os três termos no membro direito da igualdade referem-se aos fluxos médios de água na bacia a montante do posto de medição da vazão. Assim, na nossa análise de longo prazo de séries históricas de vazões fluviais, sabemos exatamente qual é o processo gerador de dados (PGD) das séries: o balanço hídrico a montante do ponto de medição (resumido na equação acima).

No balanço acima, a transpiração vegetal depende basicamente da cobertura vegetal da bacia: quanto mais vegetação, mais transpiração; assim, o desmatamento tende a aumentar a vazão na calha da bacia. Por outro lado, a precipitação e a evaporação estão basicamente relacionadas ao clima da bacia (a evaporação depende, em primeira aproximação, da temperatura do ar).

Ou seja, no longo prazo a vazão depende basicamente de dois fatores: da cobertura vegetal na bacia e do clima da região. Tanto alterações na cobertura vegetal quanto mudanças climáticas podem provocar variações significativas na vazão média de descarga de uma bacia hidrográfica, sendo que os efeitos destes dois fatores são aditivos: se atuarem ao mesmo tempo, eles podem se reforçar ou se cancelar mutuamente, conforme as variações de vazão provocadas por cada um deles.

Vemos assim que apenas dois fatores são capazes de alterar as vazões naturais no longo prazo: desmatamento e clima. Além disso, os padrões regionais de variação das vazões observados indicam que estes dois fatores atuaram em escala regional em cada um dos Setores Nordeste, Sudeste e Sul. Caso contrário, seria implausível que, dentro de cada um destes Setores, diversas bacias hidrograficamente independentes seguissem um mesmo padrão. Considerados conjuntamente, estes dois elementos permitem uma triangulação das causas determinantes das variações de longo prazo da vazão dos rios brasileiros:

No período correspondente à primeira metade das séries históricas do ONS (ou seja, entre as décadas de 1930 e 1970), a temperatura média da Terra permaneceu praticamente constante, como podemos ver na figura abaixo:

 

Temperatura decenal do Planeta - IPCC, AR6, WG1, p.333

Assim, os padrões regionais de variação identificados na primeira metade das séries de vazão não podem ser atribuídos a mudanças climáticas em escala regional. Por outro lado, mudanças no microclima de cada bacia não formariam um padrão regional de variação das vazões de longo prazo, como o observado. Portanto, podemos concluir que o aumento das vazões nos Setores Sudeste e Sul na primeira metade das séries é devido às altas taxas de desmatamento nestas regiões.

Essa conclusão é consistente com o histórico de ocupação humana, em larga escala, dos territórios correspondentes aos Setores Sudeste e Sul entre as décadas de 1930 e 1970. No Setor Nordeste, por outro lado, as alterações na cobertura vegetação durante este período não foram significativas, por duas razões: (i) a maior parte da ocupação antrópica nesta parte do país ocorreu antes da década de 1930; e (ii) a massa vegetal nas bacias é relativamente pequena, devido à aridez da região. Assim, o balanço hídrico não sofreu grandes alterações na primeira metade das séries históricas, e portanto a vazão média de longo prazo dos rios permaneceu constante no Setor Nordeste.

Quanto à segunda metade das séries históricas, podemos ver no gráfico acima que neste período houve um rápido aumento da temperatura média do planeta, que está associado a alterações climáticas em escala regional, em diversas partes do Planeta. Desse modo, ao contrário da primeira metade das séries, aqui devemos esperar uma contribuição significativa da variação dos parâmetros climáticos (principalmente chuva e temperatura média) na conformação dos padrões regionais de variação de longo prazo das vazões naturais.

Em contrapartida, as taxas de desmatamento nos Setores Sudeste e Sul foram muito menores na segunda metade das séries do que na primeira, pois nesta época já havia pouca vegetação primária sujeita à retirada legal. Desse modo, podemos concluir que, na segunda metade das séries históricas de vazão, os padrões regionais de variação de longo prazo identificados nos Setores Nordeste, Sudeste e Sul foram configurados por mudanças climáticas, em escala regional, associadas ao aquecimento global antrópico.

Temperaturas #

As alterações climáticas regionais observadas entre as décadas de 1980 e 2010 são bem conhecidas —praticamente todo o território nacional ficou mais quentes no período:

 

 

Antes da década de 1970, a temperatura no país aumentou lentamente, seguindo a tendência geral de aquecimento do planeta. Por exemplo, no Nordeste do país, a temperatura média permaneceu praticamente estável até a década de 1970, mas o aquecimento foi acelerado a partir de então:

 

 

IPCC, AR6, WG1

Chuvas #

Quanto às chuvas, há grandes diferenças nas tendências de variação observadas no território nacional entre as décadas de 1980 e 2010:

 

IPCC, AR6, WG1

 

Em termos gerais, as chuvas vêm aumentando nas regiões meridionais do Brasil (aproximadamente abaixo do paralelo 20°S, figura acima) e diminuindo no Setor Nordeste. Por outro lado, as alterações de precipitação no Setor Norte-Oeste do país são bastante heterogêneas, contribuindo para a ausência de um padrão regional de longo prazo nas vazões dos rios deste Setor.

A maior parte dessas mudanças no regime de chuvas aconteceu a partir da década de 1970, seguindo a tendência geral das mudanças climáticas globais. Por exemplo, as chuvas no Nordeste do país permaneceram praticamente estáveis até a década de 1970, mas a redução foi acelerada a partir de então, como podemos ver na figura abaixo:

 

IPCC, AR6, WG1

 

O impacto das mudanças climáticas na vazão dos rios brasileiros foi analisado por diversos estudos, que convergem para uma conclusão geral: as vazões tendem a aumentar nas partes meridionais do país, aproximadamente abaixo do paralelo 20°S, e diminuir acima desta latitude (seguindo a tendência das precipitações que observamos anteriormente).

Por exemplo, um projeto de Pesquisa e Desenvolvimento patrocinado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) [3] analisou o impacto das mudanças climáticas nas vazões naturais afluentes publicadas pelo ONS (ou seja, nas mesmas variáveis que estamos considerando neste trabalho). O mapa abaixo resume os principais resultados deste estudo:

 

P&D ANEEL Nº 10/2008: Efeitos das Mudanças Climáticas na Geração de Energia Elétrica

 

Esses resultados explicam a diferença observada entre os Setores Sudeste e Sul, nos padrões regionais da segunda metade das séries: diminuição das vazões no Setor Sudeste e aumento no Setor Sul.

Sumarizando nossas conclusões:

Setor Nordeste #

As mudanças climáticas associadas ao aquecimento global explicam perfeitamente a tendência geral na segunda metade das séries de vazão: além da diminuição da precipitação média, o rápido aumento da temperatura tem provocado mais evaporação nas bacias. O efeito combinado destes dois fatores é uma diminuição consistente na vazão média de longo prazo dos rios.

Na primeira metade da série, entretanto, alterações climáticas regionais não ocorreram ou foram muito lentas, pois os efeitos do aquecimento global ainda eram negligenciáveis entre as décadas de 1930 e 1970. Além disso, como as alterações na cobertura vegetal também não foram significativas, o balanço hídrico das bacias não sofreu grandes alterações na primeira metade das séries históricas, e portanto a vazão média de longo prazo dos rios permaneceu estável neste período.

Setor Sul #

As mudanças climáticas associadas ao aquecimento global explicam a tendência geral observada na segunda metade das séries históricas de vazão: o aumento da temperatura tem provocado mais evaporação nas bacias, porém esta perda de água é mais do que compensada pelo aumento da precipitação, resultando em uma tendência de crescimento das vazões nos rios. O aumento de vazões na primeira metade das séries, entretanto, não pode ser atribuído a alterações nos parâmetros climáticos regionais: como a temperatura média do planeta ficou praticamente constante entre as décadas de 1930 e 1970, estes parâmetros variaram muito lentamente no período.

Por outro lado, as taxas de desmatamento no Sul do país ainda eram altas antes da década de 1970, o que provocou uma redução constante na transpiração vegetal e o consequente aumento das vazões dos rios. Assim, o aumento constante das vazões ao longo de toda a série histórica (de 1931 a 2021) é devido a dois fatores que atuaram independentemente no balanço hídrico: o desmatamento na primeira metade das séries (com poucas alterações na temperatura e precipitação) e mudanças climáticas na segunda metade (com baixas taxas de desmatamento).

Setor Sudeste #

Aqui temos uma combinação das tendências de longo prazo das duas áreas anteriores, pois este Setor é uma região de transição entre elas: na primeira metade das séries históricas, as vazões aumentaram devido às altas taxas de desmatamento (como no Setor Sul), e as alterações antrópicas de temperatura e precipitação não eram significativas.

Porém, na segunda metade das séries, o desmatamento diminuiu (pois já havia pouca vegetação sujeita à retirada legal), e o aquecimento global provocou um crescimento da evaporação nas bacias maior do que eventuais incrementos na precipitação. O resultado foi a diminuição das vazões médias a partir da década de 1970, observada nos rios deste Setor.

A figura abaixo resume graficamente essas mesmas conclusões sobre as causas dos padrões regionais de variação das vazões dos rios:

 

infografico


As taxas de desmatamento nos Setores Sul e Sudeste não cessaram abruptamente no ano 1975: houve apenas uma diminuição mais rápida destas taxas a partir da década de 1970. Analogamente, os parâmetros climáticos regionais não ficaram absolutamente constantes antes da década de 1970, pois o sistema climático global é dinâmico. Assim, as explicações acima devem ser entendidas no seguinte sentido: nos Setores Sul, Sudeste e Nordeste, o efeito do desmatamento foi dominante na primeira metade das séries históricas, enquanto as mudanças climáticas antrópicas prevaleceram na segunda metade.

As vazões dos rios nos Setores Sul, Sudeste e Nordeste apresentam os padrões regionais de longo prazo observados porque, nas bacias destas regiões, os dois fatores determinantes no balanço hídrico – desmatamento e mudanças climáticas – mantiveram-se espacialmente uniformes e aproximadamente constantes durante cada uma das duas metades do período 1931-2021.

No restante do país (ou seja, no Setor Norte-Oeste), as taxas de desmatamento começaram a crescer principalmente após a década de 1970, na mesma época que os efeitos das mudanças climáticas antrópicas começaram a se tornar mais significativos. Além disso, a fronteira agrícola vem se deslocando continuamente desde então, gerando taxas de desmatamento variáveis e espacialmente heterogêneas durante a segunda metade das séries históricas, resultando na ausência de um padrão regional de longo prazo nas vazões dos rios deste Setor.

3. Modelagem estatística e projeções #

As projeções apresentadas neste website para as vazões médias de rios brasileiros dos Setores Nordeste, Sudeste e Sul, até a década de 2040, estão fundamentadas em três elementos:

  1. O conhecimento obtido na seção anterior sobre o Processo Gerador de Dados (PGD) das séries históricas de vazão, isto é, sobre as causas dos padrões de variação identificados nestas séries.

  2. A modelagem estatística desse PGD por meio de técnicas bem conhecidas, tais como o ajuste de curvas aos dados pelo método dos mínimos quadrados; e

  3. O conhecimento científico sobre a dinâmica das mudanças climáticas, em particular sobre os efeitos do atual desequilíbrio térmico do Planeta na evolução destas mudanças.

Uma primeira observação importante é que o desmatamento não será um fator determinante da evolução das vazões médias nos Setores Sudeste e Sul nas próximas décadas, pois as taxas de desmatamento não voltarão aos patamares observados antes da década de 1970 nestas áreas: já resta muito pouca vegetação nativa para ser retirada. Além disso, vimos que, no Setor Nordeste, o desmatamento não foi um fator significante de variação das vazões de longo prazo em nenhum período das séries em questão. Assim, o desmatamento não será um fator determinante da evolução das vazões médias nas próximas duas décadas, em nenhum destes três Setores (Nordeste, Sudeste e Sul).

Por outro lado, as mudanças climáticas não cessarão nas próximas duas décadas, a despeito de eventuais (e improváveis) reduções nas emissões globais de gases de efeito estufa. Isto porque há hoje um grande desequilíbrio entre a temperatura média do planeta e a concentração atmosférica destes gases. Assim, os impactos das mudanças climáticas os balanços hídricos, pelos próximos 20 anos, já estão determinados, como deixa claro o sexto relatório de avaliação do IPCC [2]:

Scenarios with very low or low GHG emissions (SSP1-1.9 and SSP1-2.6) lead within years to discernible effects on greenhouse gas and aerosol concentrations and air quality, relative to high and very high GHG emissions scenarios (SSP3-7.0 or SSP5-8.5). Under these contrasting scenarios, discernible differences in trends of global surface temperature would begin to emerge from natural variability within around 20 years, and over longer time periods for many other climatic impact-drivers (high confidence). [AR6, WG1, SPM, D.2]

Além disso, o que se pode esperar nos próximos vinte anos é a continuação das tendências observadas nas últimas décadas:

Water cycle changes that have already emerged from natural variability will become more pronounced in the near term (2021–2040),… [IPCC, AR6, WG1, p. 1059]

Ou seja, os impactos das mudanças climáticas já observados nas vazões dos rios brasileiros vão se tornar mais pronunciados nas próximas duas décadas, independentemente das negociações internacionais no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudanças Climáticas (UNFCCC) e da trajetória futura das emissões globais de gases de efeito estufa. Desse modo, as informações contidas nas séries históricas de vazão natural do ONS podem ser usadas para projetar, com alta confiabilidade científica, a tendência das vazões médias nas próximas duas décadas.

Modelos estatísticos #

Para tanto, o método mais adequado é a modelagem estatística das séries históricas de vazões médias anuais, pois as médias decenais desconsideram informações relevantes que estão disponíveis nas séries anuais. Neste processo, as variações interanuais são consideradas como mero “ruído” estatístico: o sinal que procuramos extrair das séries é o valor central da distribuição de probabilidades das vazões em cada ano futuro.

As técnicas estatísticas de modelagem de séries históricas são bastante estudadas e bem conhecidas, pois têm diversas aplicações em inúmeros campos de conhecimento. A ideia central da modelagem é relativamente simples e intuitiva: determinar a função matemática que melhor se ajusta a cada série de dados, dentro de uma família de funções inferida a partir da própria série ou, melhor ainda, a partir de informações sobre seu PGD, isto é, o processo físico que resulta nos valores observados.

A imagem mental do processo é semelhante à bem conhecida “regressão linear”, isto é, o ajuste de uma linha reta a um conjunto de dados. Com efeito, a regressão linear é um exemplo de modelagem estatística, onde a família de funções escolhida é o conjunto de todos os polinômios de primeiro grau, da forma y=ax+b (onde x e y são as variáveis independente e dependente, respectivamente, enquanto a e b são os parâmetros da família, a serem ajustados).

No entanto, em muitos casos, os modelos lineares são inadequados para separar ruído e sinal da série de dados; e existem técnicas para determinar os casos em que isto acontece. Algumas destas técnicas são puramente estatísticas, como a análise dos resíduos do ajuste (a diferença entre valores observados e modelados), mas neste ponto é importante trazer para a modelagem todas as informações disponíveis sobre o PGD.

Consideremos, por exemplo, o modelo linear para a série de vazões naturais afluentes no reservatório de São Simão, no Rio Paranaíba:

ssimao_linear

A reta que melhor se ajusta à série histórica acima é ligeiramente ascendente, quase horizontal. Isto poderia sugerir que a vazão média de longo prazo do Rio Paranaíba em São Simão está estável desde 1931, e que ela não deve se alterar significativamente nas próximas décadas. Mas sabemos que o PGD desta série de vazões é o balanço hídrico na bacia a montante de São Simão, e que dois fatores distintos influenciaram o resultado deste balanço: o desmatamento na bacia e as mudanças climáticas. Além disso, sabemos que a influência do desmatamento foi dominante na primeira metade da série, provocando um aumento das vazões médias, e que as mudanças climáticas prevaleceram a partir da década de 1970, causando uma diminuição das vazões.

O modelo linear não é capaz de representar esses dois fatores que atuaram independentemente no balanço hídrico da bacia a montante de São Simão entre 1931 e 2021, pois ele pressupõe uma tendência constante durante toda a série. A insuficiência do modelo pode ser comprovada pela análise dos resíduos do ajuste linear (abaixo), que apresentam um padrão espacial não aleatório, na forma de um “U” invertido, indicando que o ajuste linear não modela adequadamente o comportamento da série:

ssimao_linear

Desse modo, adotar como modelo a mera regressão linear das vazões em São Simão leva a conclusões equivocadas, pois as influências independentes do desmatamento (na primeira metade da série) e das mudanças climáticas (segunda metade) são embaralhadas pelo modelo, levando à falsa impressão de que a série histórica não apresenta tendências de longo prazo entre 1931 e 2021.

O exemplo acima mostra a importância de uma análise cuidadosa do PGD das séries de vazão, ou seja, do balanço hídrico na bacia a montante do ponto de medição. Com efeito, sabemos que o aumento das vazões na primeira metade da série foi provocado pelas altas taxas de desmatamento na bacia, e que estas taxas não voltarão aos patamares anteriores à década de 1970. Por outro lado, sabemos que a diminuição na segunda metade da série é devida às mudanças climáticas, que permanecerão nos próximos 20 anos (pelo menos), independentemente de eventuais reduções nas emissões globais de gases de efeito estufa. Portanto, vemos que as vazões em São Simão vão diminuir nas próximas duas décadas, quaisquer que sejam os resultados das negociações internacionais no âmbito da UNFCCC.

Essa projeção qualitativa pode ser quantificada por uma modelagem estatística mais avançada da série de vazões em São Simão. Para tanto, devemos adotar modelos capazes de descrever corretamente a dinâmica do PGD da série, inclusive a transição que ocorreu por volta da década 1970, durante a qual a influência do desmatamento no balanço hídrico diminuiu gradualmente, e o impacto das mudanças climáticas passou a ser dominante.

O mais simples desses modelos é o polinomial quadrático, isto é, o polinômio de segundo grau que melhor se ajusta aos dados (da mesma forma que a regressão linear determina o polinômio de primeiro grau que melhor se ajusta ao dados). Em outras palavras, o método consiste em determinar a função da forma y=ax2+bx+c que minimiza os desvios quadráticos em relação à série histórica (onde x e y são as variáveis independente e dependente, respectivamente, enquanto a, b e c são os parâmetros a serem ajustados). O resultado desta modelagem está representado graficamente na imagem seguinte:

ssimao

Projeção das vazões #

Utilizando o modelo quadrático, podemos obter projeções quantitativas para as vazões médias anuais em São Simão nos próximos vinte anos, graficamente:

ssimao

Finalmente, tomando as médias decenais das décadas de 2020 e 2030, obtemos as projeções desejadas:

ssimao

As figuras acima revelam que as projeções seguem a tendência decrescente das vazões na segunda metade da série histórica, o que é perfeitamente correto, pois sabemos que as mudanças climáticas causaram esta diminuição das vazões nas últimas décadas; que elas continuarão a atuar nos próximos vinte anos; e que as taxas de desmatamento na bacia (responsáveis pelo aumento das vazões na primeira metade da série) não voltarão aos patamares anteriores à década de 1970.

Outros modelos estatísticos mais complexos podem ser usados para projetar as vazões futuras, desde que eles sejam capazes de descrever adequadamente o que sabemos de antemão sobre o PGD. Estes modelos também devem ser considerados, pois podem captar sutilezas das séries históricas que o quadrático não apreende. Por exemplo: pelo que sabemos do PGD no Setor Sudeste, não há razão para a queda das vazões na segunda metade das séries (provocada pelas mudanças climáticas) tenha a mesma velocidade que o aumento das vazões na primeira metade (desmatamento); mas o modelo quadrático não é capaz de captar este detalhe, pois seu gráfico é uma parábola, que tem um eixo de simetria vertical.

Porém, modelos estatísticos mais complexos têm mais parâmetros a serem ajustados (graus de liberdade) do que o modelo quadrático, e assim seriam mais propensos a incluir ruídos das séries de vazão nas suas projeções (principalmente ruídos nas extremidades das séries). Assim, como as vazões têm alta variabilidade interanual, as projeções poderiam ser mais afetadas por flutuações aleatórias nos últimos anos da série, por exemplo.

Além disso, os modelos estatísticos mais complexos que foram aplicados pelo autor às séries históricas de vazão do ONS tipicamente resultaram em projeções que se afastam mais das médias históricas do que o modelo quadrático. Assim, o modelo mais simples (quadrático) tende a ser o mais apropriado para fornecer projeções conservadoras para as vazões médias dos rios brasileiros nos próximos 20 anos.

Referências #

[1] Séries de dados disponíveis no website do Operador Nacional do Sistema Elétrico: www.ons.org.br.

[2] IPCC, 2021: Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Masson-Delmotte, V., P. Zhai, A. Pirani, S.L. Connors, C. Péan, S. Berger, N. Caud, Y. Chen, L. Goldfarb, M.I. Gomis, M. Huang, K. Leitzell, E. Lonnoy, J.B.R. Matthews, T.K. Maycock, T. Waterfield, O. Yelekçi, R. Yu, and B. Zhou (eds.)]. Cambridge University Press, Cambridge, United Kingdom and New York, NY, USA, 2391 pp. doi:10.1017/9781009157896. www.ipcc.ch/report/sixth-assessment-report-working-group-i/.

[3] ANEEL, P&D Nº 10/2008: Efeitos das Mudanças Climáticas na Geração de Energia Elétrica, José Wanderley Marangon Lima, Walter Collischonn e Jose A. Marengo (org.), AES Tietê, São Paulo, 2014.



Última atualização em 10/ago/2023.